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02/03/2020

ARTIGO: EM TERRA DE CEGO, QUEM TEM UM OLHO É REI. EM TERRA DE TOLOS, QUEM TEM BOM SENSO SOFRE

“Tente colocar bom senso na cabeça de um tolo e ele dirá que é tolice.”

(Eurípedes)

Muito se fala sobre a falta de dignidade da pessoa humana associada à precarização do trabalho, mas utopias, demagogias, ideologias e contos de carochinha à parte, necessário se reconhecer que o mundo mudou.

Dignidade da pessoa humana é poder andar na rua com segurança, em qualquer momento do dia ou da noite; precisar de tratamento médico e ter atendimento; buscar o judiciário e ter segurança jurídica, entre outras tantas coisas que envolvem um princípio de ordem constitucional, aplicável a todos os cidadãos, sejam eles empregados ou não. E aqui se usa o termo “empregado”, já que nem todo trabalhador é empregado.

Não se pode confundir “dignidade” com “trabalho” ou mesmo com “emprego”, pois não são sinônimos.

Dentro desta distinção, quem prega a precarização do trabalho foge do problema realmente existente, que é a constatação de que existem desempregados que poderão arranjar emprego, existem trabalhadores empregados que poderão muito em breve estar desempregados e existem ainda desempregados sem chance de voltarem a ser empregados.

Tal cenário existe como consequência direta do desenvolvimento tecnológico e da globalização, não sendo culpa exclusiva do empresário. Está na hora de acabar com a ideia de que a empresa é o inferno e o empresário é o diabo.

Por exemplo, não são raras as casas que se valem dos trabalhos das conhecidas diaristas, numa variação (evoluída) da já quase extinta profissão da empregada doméstica. Estas trabalhadoras, num passado não tão distante, tinham que ter conhecimento tão e somente sobre limpar a casa, passar roupa e qualquer coisa além disto era um diferencial, sendo dispensável inclusive a alfabetização. Hoje a situação não é mais esta. A tecnologia dos aparelhos domésticos (evolução tecnológica) obriga que a pessoa seja alfabetizada, tenha um conhecimento básico de inglês e inclusive saiba interpretar um manual de instruções. A pessoa deve conhecer, dentro do universo dos produtos de limpeza existentes (evolução da indústria química), quais os que pode ou não usar num tecido, num móvel, se pode ser perigoso ao pet, etc.  Há residências onde a diarista faz a lista de compras, chama a lavanderia e ainda fica encarregada de outros afazeres (a dona da casa trabalha fora), o que obriga que tenha senso de organização, economia doméstica e saiba lidar com dinheiro.

A conhecida profissão de acompanhante da pessoa com necessidades especiais, hoje chamada de “cuidador”, também mudou. Antigamente seria acompanhante qualquer um que tivesse boa vontade, paciência e tempo, sem necessidade de qualquer qualificação ou conhecimentos especiais, sendo dispensável a alfabetização. Hoje, face a evolução da medicina, os equipamentos médicos foram para dentro das casas, e então o “cuidador” tem que saber operar um aparelho de pressão, um medidor de glicemia, um termômetro. A evolução da indústria farmacêutica levou para dentro das casas também a facilidade da administração dos medicamentos e o “cuidador” tem que saber ler uma receita médica, comprar uma medicação, preparar e aplicar injeção.

Assim como nestes exemplos, poder-se-ia analisar outros tantos, sempre concluindo que a evolução da humanidade obriga a uma forma de análise do trabalho e do emprego com ela compatível.

Para uma pessoa ser “empregado”, ela tem que ser “empregável”. Quando o mundo do mercado de trabalho não exigia muitos conhecimentos técnicos para a maioria dos empregos, a grande maioria das pessoas era empregável. Hoje já não é assim.

Cada vez mais diminui o número de empregos e somente os trabalhadores mais preparados serão empregáveis, e aqui residem dois grandes problemas da humanidade, que são a acomodação e a dificuldade de acompanhamento do progresso tecnológico que, há quem diga, não tem retorno.

O ser humano tem uma predisposição à acomodação e somente graças a poucos “iluminados” saímos da idade da pedra. As pessoas acham uma perda de tempo pensar o como, o quando, o por que, e muito menos se dá para fazer diferente, preferindo o “receber pronto”.

E daí não se pode achar estranho que ditas transformações tenham atropelado a maioria dos empregados que não se prepararam ou mesmo se especializaram. Deixaram de ser empregados e alguns sequer se encontram na condição de ser “empregáveis”.

Aquilo que se conhece como evolução tecnológica, hoje, já é passado e a capacidade humana para adaptação é testada diariamente. O conhecimento nunca foi tanto e tão acessível, mas ainda assim tão restrito a poucos, que efetivamente o compreendem.

Os robôs estão substituindo os empregados nas empresas, nas casas, nos escritórios e em qualquer local nos vemos interagindo com tais seres, dotados inclusive do poder de conversar entre si e sobre os quais temos dúvidas se não nos julgam ignorantes.

Enquanto o empregado está preocupado até hoje com questões como: se o intervalo intrajornada pode ou não ser dado após a primeira hora de trabalho ou somente é válido quando gozado no meio da jornada do trabalho; ou ainda se o ônibus da empresa que o pega cedo para   levar ao trabalho, no conforto do ar condicionado, deve ou não ser contado como hora trabalhada, em verdade também deveria estar pensando em como se manter “empregável”.

É necessária uma reflexão profunda sobre as relações de trabalho.

A moda agora é falar da precarização do trabalho, mas não se pode acreditar nisto. Existe, sim, uma precarização das pessoas que, desqualificadas, levam à precariedade do trabalho, pois acomodação e desatualização obrigam-nas a trabalhar naquilo que podem conseguir, e não necessariamente são empregadas.

E o fato de serem trabalhadores, mas não necessariamente empregados, não significa que haja qualquer infringência ao princípio da dignidade da pessoa humana. Como já dito, a dignidade da pessoa humana é princípio constitucional, direito de qualquer cidadão, empregado ou não. Lembrando Cazuza –  “Ideologia, eu quero uma pra viver” – prefiro que a minha seja recheada de bom senso; nunca serei rei, mas também nunca serei tolo.

Autora: Valéria dos Santos Estorillio, sócia do GC&B.

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